Segundo a procuradora, anteriormente era comum encontrar nas operações de fiscalização, em ĂĄreas rurais, homens em condições anĂĄlogas à escravidão. Mas, no caso de mulheres, não havia resgates. De acordo Juliane Monetti, elas estavam desempenhando funções na cozinha das próprias casas para alimentar os trabalhadores da propriedade. Segundo a procuradora, a justificativa era de que essas mulheres não estavam prestando serviços para as famĂlias e, por isso, não eram incluĂdas na condição de trabalho anĂĄlogo à escravidão.
"Um trabalho exercido no âmbito doméstico também é um trabalho. Tem uma questão de gĂȘnero muito forte, porque mulheres que estão trabalhando com as famĂlias e são levadas pequenas para trabalhar de babĂĄ, depois viram faxineira, cozinheira e no final da vida fica cuidando dos mais velhos, isso era muito naturalizado", explicou, indicando que, hoje, os casos de trabalho do cuidado jĂĄ estão sendo mais foco de atenção.De acordo com a procuradora, neste caso, a defesa das pessoas é dizer que a mulher é como uma pessoa da famĂlia, mas, na verdade, "ela não estĂĄ no inventĂĄrio, não vai ser herdeira, não foi para a escola, não tem uma profissão, não tem liberdade para fazer uma viagem de férias. Essa pessoa estĂĄ ali apenas para servir fazendo o trabalho do cuidado. Acho que a sociedade amadureceu esse olhar e passou a perceber que essas mulheres nessa condição, a maioria é de idosas, é exploração do trabalho", afirmou.
Caso Maria de Moura
Uma situação de violĂȘncia contra idosos que chamou muita atenção quando foi descoberta é a de Maria de Moura, de 87 anos. Em 2022, depois de uma operação do Ministério PĂșblico do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ) em conjunto com o Ministério do Trabalho e Emprego, ela foi resgatada da casa de uma famĂlia, para a qual, por 72 anos, desempenhou funções de doméstica. Os fiscais, que chegaram ao local depois de uma denĂșncia, constataram que a idosa estava em situação anĂĄloga à escravidão.
Ana Luiza de Moura Lima, de 42 anos, sobrinha de Maria, disse que a história da tia começa quando, aos 12 anos, ela foi trazida de Vassouras com o argumento de que faria companhia à filha dos patrões dos pais de Maria que também estava se mudando para o Rio. Eles trabalhavam na fazenda daquela famĂlia, no municĂpio do centro-sul do estado do Rio. Com o passar dos anos, a promessa de que teria uma vida igual à da menina não foi cumprida e, na verdade, Maria era doméstica da casa, no bairro de Maria da Graça, na zona norte da capital fluminense, e nem mesmo frequentou escolas.
"O mesmo tratamento da menina, dariam para a minha tia. Escola, alimentação, eram duas crianças. Minha avó, vendo, pelo menos, um filho ter educação, deixou a minha tia vir. Minha tia, negra, longe da famĂlia e pobre ficava em casa enquanto a outra ia estudar e, ali, aconteceu, virou empregada do lar. A minha tia não tem escolaridade, muito mal sabe escrever o nome", revelou Ana Luiza à AgĂȘncia Brasil.
A menina cresceu, e quando casou se mudou para o bairro do Méier, também na zona norte, levando Maria, que continuou com os trabalhos de doméstica e cuidando da famĂlia da patroa. Ana Luiza suspeita que a tia era induzida a esconder a condição de vida. "Sempre que a gente entrava no assunto carteira assinada, benefĂcios, ela falava 'isso é comigo, eles fazem tudo direitinho'. Nunca deu espaço para a gente brigar por ela sobre isso", relatou, acrescentando que o patrão acuou a tia no carro, no momento em que ela estava sendo resgatada. "Uma pessoa que fez isso na frente das autoridades, imagina o que fazia quando estavam só ela e eles".
Os parentes ainda conseguiam ter algum tipo de contato com ela, que, quando era mais nova, chegava a se encontrar esporadicamente com a mãe, em Vassouras, nas vezes em que os patrões iam à fazenda e, quando podia ir sozinha, permanecia no mĂĄximo por dois dias. No entanto, durante a pandemia, as dificuldades de falar com a tia se agravaram, e ela nem atendia o celular.
"Na pandemia, perdemos o contato total, e quando eu ligava, o telefone só tocava e ninguém atendia", disse acrescentando que isso aconteceu até o dia em que o patrão, neto do casal que trouxe Maria para o Rio, atendeu, e ao ser questionado por Ana Luiza sobre o que estava ocorrendo, respondeu que não estava acontecendo nada.
Segundo a sobrinha, quando a tia foi resgatada no Méier, ela apresentava sinais de demĂȘncia e de comprometimento da visão no olho direito, em consequĂȘncia de uma cirurgia de catarata malsucedida e com o outro jĂĄ não enxergava. Foi assim que a idosa chegou à casa da sobrinha, na Cidade de Deus, zona oeste do Rio, onde passou a morar com a famĂlia. A idosa perdeu as forças nas pernas e atualmente não consegue caminhar.
"Hoje o meu sentimento é de revolta. Tenho hoje uma escrava viva dentro do meu lar. Infelizmente é triste, mas essa é a realidade. Ela abdicou da vida dela, trabalhou a vida toda para brancos. Uma negra que, desde lĂĄ de trĂĄs, trabalhou para branco a vida toda. Ela recebeu todos os maus tratos que um escravo recebia lĂĄ atrĂĄs dos patrões. Eles diziam que ela fazia parte da famĂlia. Isso não acontecia, porque quando se faz parte da famĂlia, usa todos os cômodos da casa, todos os veĂculos. Ela só era empregada, e sempre foi. Nós, os parentes, não podĂamos chegar lĂĄ sem avisar, porque a casa não era dela", desabafou Ana Luiza.
DenĂșncia
A procuradora do Ministério PĂșblico do Trabalho, Juliane Monetti, contou que a famĂlia de dona Maria tentava contato, mas o patrão a repelia e não deixava. Para estar com ela, tinha que ser na presença dele. Nem para falar no celular, ele deixava. "Realmente era uma violĂȘncia constante não só pela exploração do trabalho, mas também a violĂȘncia psicológica. A famĂlia [dela] foi denunciando a um órgão e outro, até que chegou ao Ministério PĂșblico do Trabalho. AĂ, conseguimos fazer uma operação que resgatou a trabalhadora dessa condição de violĂȘncia. Essa é uma situação que a gente tem verificado, em casos de exploração em trabalho doméstico que se repete", informou em entrevista à AgĂȘncia Brasil.
A procuradora identificou que o caso tem componentes de gĂȘnero e de idade, comuns em condições em que a trabalhadora jĂĄ convive com a famĂlia nessa situação de trabalho doméstico hĂĄ muitos anos. Situação que acaba se repetindo porque a sociedade vai naturalizando.
"O que é importante é que a gente divulgue os casos que existem para que as pessoas percebam que isso é irregular, é ilegal, é um crime e que a sociedade possa denunciar situações como essa. Quando vocĂȘ percebe que existe uma pessoa convivendo com uma famĂlia e estĂĄ ali apenas para prestar serviço e servir, os direitos trabalhistas e a cidadania não são respeitados", completou.
Ressarcimento
Como se trata de uma grave violação de direitos humanos, e foi configurado trabalho anĂĄlogo à escravidão, não incide a prescrição. Por isso, o MPT propôs uma ação em que pede o pagamento das verbas trabalhistas de todo o perĂodo desde que foi morar com a famĂlia. "Além disso, a gente também pede indenizações por danos morais causados para a trabalhadora pela vida toda dedicada a este trabalho sem dignidade, com desrespeito aos direitos mais bĂĄsicos de cidadania e direitos humanos. Mas, infelizmente, por maior que seja a indenização que ela venha a receber, isso não repara uma vida toda nessa situação", disse a procuradora do MPT.
Depois de denĂșncia do Ministério PĂșblico Federal, em março de 2024, a Justiça tornou réus mãe e filho. Os dois eram patrões de dona Maria. "A gente estĂĄ buscando os direitos trabalhistas dela e toda essa documentação, toda a configuração do crime, tudo isso foi encaminhado ao Ministério PĂșblico Federal, que entrou com ação penal contra os réus. Eles estão respondendo na Justiça Federal como réus pela exploração de crime de submissão de trabalhador à condição anĂĄloga à escravidão", completou Juliane Monetti.
Em 2017, a procuradora atuou em outro caso, no interior de Minas Gerais. Dessa vez, uma senhora de 67 anos, que o cartão da aposentadoria ficava na mão da patroa e, ainda, era obrigada a comprar a sua comida na venda do pai da empregadora. Ela também não podia sair nos fins de semana, porque tinha que cuidar dos netos da famĂlia. "Era uma senhora viĂșva que não tinha para onde ir e acabou caindo nessa situação de exploração deste trabalho", relatou, defendendo a divulgação dos canais de denĂșncias para incentivar a sociedade a fazer os registros.